A concentração da matéria orgânica em efluentes é um dos principais indicadores da qualidade do tratamento biológico. Por décadas as indústrias tem monitorado a eficiência do tratamento e suportado suas decisões nos parâmetros associados exigidos pela legislação (DQO e DBO). No entanto, o aumento da complexidade dos processos, a disponibilidade de área útil para instalação de novas unidades de tratamento e as exigências cada vez mais maiores dos órgãos ambientais tem levado à busca de tecnologias de monitoramento que indiquem de maneira mais rápida e precisa as situações de risco ao tratamento biológico, possibilitando ao gestor ambiental a tomada de ações mais assertivas, visando minimizar os riscos de impacto ao meio ambiente.
Neste artigo será apresentado um parâmetro “esquecido” de análise da matéria orgânica (ele já tem mais de 40 anos de história!), cuja configuração permite seu emprego diretamente em linha, emitindo resultados extremamente rápidos e correlacionáveis com os parâmetros clássicos de DQO e a DBO .
Choques de carga orgânica em tratamento biológico de efluentes industriais
Se por um lado efluentes domésticos tendem a ter uma carga de matéria orgânica baixa e relativamente constante, estações de tratamento em ambientes industriais podem conviver com situações bastante desafiadoras, especialmente no que se refere aos ditos “choques” de carga. Por exemplo, certos processos industriais como o têxtil e a produção de alimentos, podem despejar inopinadamente cargas elevadíssimas de matéria orgânica no sistema de tratamento, resultando em aumentos repentinos da DQO da ordem de centenas de g/L!
Em princípio, quando previsto em projeto, este problema pode ser contornado com tempos de retenção maiores nos reatores biológicos ou outras medidas como a diluição e a contenção temporária em tanques ou lagoas de equalização. Entretanto, estas possibilidades nem sempre estão à mão do gestor ambiental, e nem toda indústria pode se dar ao luxo de instalar novos reatores e/ou receptores de efluentes com dimensões adequadas para este fim.
Em sistemas aeróbios como o lodo ativado, o monitoramento de oxigênio dissolvido (OD) pode ser usado como um parâmetro indireto da carga orgânica influente, mediante a estimativa da velocidade específica de consumo de oxigênio (SOUR). Entretanto, este monitoramento reflete um “fato consumado”, ou seja, o choque já terá ocorrido horas antes da depleção do OD. Além disso, cabe ressaltar que baixas SOUR podem ser mascaradas pela presença de substâncias tóxicas (ex: fenol), que inibem significativamente a atividade microbiana. Nestes casos, ao contrário do que se espera como tendência, a redução concomitante da DQO influente não ocorre, podendo manter-se a mesma ou ser até mesmo maior que o esperado.
Já no caso de sistemas anaeróbicos como reatores tipo UASB, embora seja possível lidar com cargas orgânicas maiores, a sinergia entre os diversos níveis tróficos do leito pode ser impactada por choques, afetando, por exemplo, a qualidade e o volume de biogás produzido, o volume de lodo gerado e a eficiência total de remoção de carga orgânica [1,2].
Os parâmetros somatórios de carga orgânica em efluentes
O “avô” dos parâmetros relacionados à carga orgânica é a DBO. Ela traduz-se na concentração de OD demandada pelos microrganismos para consumir a matéria orgânica presente no efluente, em condições ideais de pH e temperatura, e se configura até hoje como o parâmetro mais relevante para o tratamento biológico. Já a DQO expressa a quantidade de matéria orgânica tanto biodegradável quanto não-biodegradável, passível de oxidação química por dicromato de potássio em meio ácido.
Ambos são parâmetros que, embora sejam amplamente difundidos e tragam informações significativas sobre o processo de tratamento, possuem a principal desvantagem de demandar tempo excessivo para execução, inviabilizando ações rápidas de controle no caso de situação atípicas. No caso da DBO, existem analisadores respirométricos* no mercado, cujas respostas são relativamente rápidas (entre 5 e 60 minutos), mas que tendem a ser menos robustos no que tange a variações de carga [3,4], padecendo dos mesmos males que o processo que se pretende controlar.
O carbono orgânico total (COT) é um parâmetro que, embora não tenha o mesmo significado da DBO e DQO, pode ser diretamente correlacionado a estes. Ele expressa a quantidade de carbono orgânico presente na amostra, mais precisamente na forma de carbono orgânico não-purgável, conforme explicado na norma Standard Methods 5310 [5]. As relações entre COT, DQO e DBO podem ser vistas no quadro abaixo.
Apesar de suas limitações (conforme será visto a seguir), a principal virtude do COT é a velocidade de análise – da ordem de 1 a 3 minutos – o que viabiliza seu emprego como analisador on-line. No entanto, nem sempre a correlação dele com a DBO ou DQO é bem-sucedida.
Demanda total de oxigênio (DTO) – rápida, atóxica e abrangente
A análise de DTO é descrita pela norma ASTM D 6238, e diferentemente da COT (matéria orgânica carbonácea não-purgável), da DBO (matéria orgânica biodegradável) e da DQO (matéria orgânica e inorgânica oxidável por dicromato em meio ácido), QUALQUER substância – orgânica ou inorgânica – seja ela “facilmente” oxidável ou recalcitrante, é contada na demanda de oxigênio [6].
A exemplo do método de COT descrito na norma Stadard Methods 5310-B [5], a análise de DTO baseia-se na oxidação térmica completa da amostra, à temperatura de 900°C ou superior. As diferenças entre os métodos são basicamente: (1) a ausência da etapa de determinação de carbono inorgânico (acidificação e purga), e; (2) o método de detecção. Na DTO, ao invés de determinar o dióxido de carbono gerado na queima, a determinação baseia-se na diferença entre as concentrações de oxigênio do fluxo de comburente antes e depois da combustão da amostra. Um fluxograma detalhado da análise é apresentado a seguir [7].
O oxigênio do ar permeia através de um tubo com fluxo interno constante de nitrogênio, a uma temperatura controlada, resultando em uma mistura com concentração conhecida e constante. A amostra é então injetada na “fornalha”, arrastada pela mistura comburente, onde ocorre a vaporização da água e oxidação completa da matéria orgânica e inorgânica oxidável. O fluxo gasoso resultante é arrastado para um resfriador, que condensa a água e, na sequência, a concentração de oxigênio remanescente é determinada por sensor eletroquímico. O sinal (pico) gerado é resultado da diferença entre as medições do comburente e da amostra após combustão.
Vantagens
A determinação da DTO possui as seguintes vantagens em relação aos outros parâmetros de quantificação de matéria orgânica:
DBO – a principal vantagem da DTO é a sua reprodutibilidade e relativa simplicidade. A análise de DBO possui um procedimento multi-etapas, cujo desempenho é bastante sensível a aspectos como o tipo de inóculo, presença de cloro residual e a qualidade da água de diluição utilizada [8]. Além disso, a despeito da reprodutibilidade publicada nas normas ser de magnitude semelhante, na prática, mesmo laboratórios certificados podem apresentar altas variabilidades nos resultados para uma mesma amostra, da ordem de 20% em relação à precisão intralaboratorial [4]. A análise de DTO, por sua vez, um exige muito pouco preparo de amostra, possui condições operacionais mais reprodutíveis, e apresenta uma robustez maior frente a oscilações na carga orgânica.
COT – embora as técnicas baseiem-se em princípios semelhantes, o valor obtido pela análise de COT não possui significado que possa ser interpretado sem a devida correlação com o parâmetro de desejo (DQO ou DBO), já que a medição é reportada como mg/L de carbono [5]. Outra questão que interfere diretamente na correlação com DQO e a DBO são as limitações no que diz respeito à quantificação: (1) somente a fração não-purgável de carbono orgânico pode ser medida, devido à necessidade de eliminação do carbono inorgânico por acidificação e purga de ar; (2) impossibilidade de quantificação de matéria orgânica não-carbonácea (nitrogenada, etc.) e; (3) diferenças significativas na demanda de oxigênio para moléculas com o mesmo número de átomos de carbono [3, 6]
DQO – além do tempo de resposta inferior (DQO tipicamente 120 minutos), a principal vantagem do uso da DTO é a ausência de reagentes tóxicos [6,9]. Na análise de DQO, utiliza-se dicromato de potássio para a oxidação da matéria orgânica, sulfato de prata como catalisador, e sulfato de mercúrio para eliminar a interferência de haletos (cloretos, brometos, etc.). Todas as substâncias citadas possuem metais pesados em sua composição, apresentando severas restrições no manuseio e no descarte no meio ambiente. Isso é especialmente relevante na análise on-line, onde o volume de consumo de reagentes é mais alto devido à quantidade superior de análises realizadas em um dado intervalo de tempo.
Desvantagens
A determinação de DTO apresenta as seguintes desvantagens intrínsecas ao método:
Correlação com DBO – Embora a norma ASTM D 6238 indique que método possui boa correlação tanto com a DQO quanto com a DBO, há relatos de dificuldades na correlação com a DBO nos casos onde há baixa concentração de compostos orgânicos complexos na amostra [6,7]. Além disso, compostos que afetam a toxicidade do meio – que por sua vez interferem diretamente a DBO [1,2] – não são adequadamente diferenciados na análise de DTO (nem pela DQO ou COT, diga-se de passagem), o que leva a problemas nesta correlação.
Interferentes
OD – ocorre nos casos onde o OD presente no padrão usado para a calibração é muito diferente que o da amostra. Como estes valores oscilam entre zero e próximo da saturação (aproximadamente 8 mg/L), ele é um interferente relevante apenas em situações onde haja diferenças significativas, na faixa de 0 – 100 mg/L (ou seja, para efluentes tratados). Neste caso, salvo as concentrações de OD sejam semelhantes, as leituras de DTO devem ser compensadas fazendo-se a medição do OD no padrão e na amostra, e aplicando a diferença ao resultado do analisador [6]
Sulfatos e nitratos – podem causar interferências negativas (DTO menor que o real), através da geração de oxigênio durante o processo de decomposição a altas temperaturas. No caso dos sulfatos, um aumento no pH da amostra praticamente elimina a interferência. Já para o nitrato, sua concentração raramente excede a 2 mg/L [9], de modo que ambas interferências tendem a não ser relevantes em efluentes brutos e/ou tratados. Ainda assim, esta técnica não é recomendada para aplicações como efluentes secundários (com capacidade nitrificante), corpos d’água receptores como rios e lagos, ou no caso em que estes interferentes estejam presentes em concentrações relevantes.
Metais pesados e sais dissolvidos – diferentemente da interferência dos haletos na análise de DQO, sais e metais pesados tendem a acumular na fornalha e no catalisador, inativando-o e levando a leituras menores que o real. Existem equipamentos que realizam a oxidação completa da amostra a temperaturas perto de 1200°C*, dispensando o uso de catalisadores. No entanto, o acúmulo de sais continua sendo uma situação que persiste, embora seja contornável com ações simples de manutenção preventiva.
Conclusão
A DTO é um método rápido e preciso, com grande vocação para o controle on-line, e ideal para aplicações onde espera-se alta oscilação na carga orgânica. O monitoramento on-line da DTO do efluente bruto – acompanhada de ações de controle condizentes como o alinhamento para armazenamento em tanques secundários, diluição, entre outras – permite minimizar os efeitos prejudiciais do choque de carga orgânica no tratamento biológico.
Quando há risco constante de despejo de compostos tóxicos no efluente bruto que possam comprometer o tratamento biológico, a análise da DTO ou DQO on-line não é de muita ajuda. Neste caso, monitores de toxicidade ou DBO on-line* são mais adequados, e o emprego das duas tecnologias certamente trará melhorias significativas na eficiência e robustez do tratamento biológico.
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Referências
[1] Sipma, J et al. Biotreatment of Industrial Wastewaters under Transient-State Conditions: Process Stability with Fluctuations of Organic Load, Substrates, Toxicants, and Environmental Parameters. Critical Reviews in Environmental Science and Technology, 40:147–197, 2010
[2] Ketheesan, B. Stuckey, D. C. Effects of Hydraulic/Organic Shock/Transient loads in Anaerobic Wastewater Treatment: A Review. Critical Reviews in Environmental Science and Technology, 45:2693–2727, 2015
[4] Jouanneau, S. et al. Methods for assessing biochemical oxygen demand (BOD): A review. Water Research, 49, 62-82. 2014.
[5] Standard Methods 5310 – Total Organic Carbon (TOC)
[6] ASTM D 6238 – Standard Test Method for Total Oxygen Demand in Water
[7] Liptak, B. Instrument Engineers’ Handbook – Process Control and Analysis. 4th Edition. Vol 1. CRC Press. 2003
[8] Standard Methods 5210 – Biochemical Oxygen Demand (BOD)
[9] Standard Methods 5220 – Chemical Oxygen Demand (COD)